Uma imagem atormenta o
médico Pedro Copetti desde a madrugada de domingo. Copetti enxerga duas jovens
dentro de uma ambulância do Samu. Uma está deitada na maca. A outra está
sentada na cadeira usada pelos médicos, a cabeça pendendo para o lado, os
braços estendidos. “As duas estavam mortas”. Foi ali, naquele momento, quando,
por impulso, ainda tentou reanimar a jovem sentada, que Copetti se deu conta de
que não havia mais nada a ser feito. Frequentadores da boate e bombeiros
retiravam do prédio e estendiam na calçada e no meio da rua corpos inertes. A
tentativa de Copetti de salvar intoxicados pela fumaça havia se esgotado.
Ontem, ao conversar com Zero Hora, ele relembrou os rostos das meninas e chorou
por duas vezes. Copetti, 32 anos, estava na primeira equipe de socorro do Samu
a chegar ao local. Ele, o enfermeiro Fabiano Miranda, 34 anos, e o motorista
Gilnei da Silva desembarcaram na Rua dos Andradas quando os próprios
frequentadores, que conseguiram sair logo depois do incêndio, arrastavam jovens
para a rua.Um dia depois, os dois se reencontraram pela primeira vez, no posto
do Samu, e abraçaram-se com força. Antes, o médico havia telefonado ao
enfermeiro para dizer:
“Tu foste meu irmão naquela hora”.Foi pouco mais de uma hora na frente da boate. E foram muitas horas depois, quando saíram dali, no Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo e dentro de um helicóptero com pacientes levados para Porto Alegre.
Na rua, Copetti e Miranda enfileiravam os corpos na calçada, tentando identificar prioridades. Chegaram a ficar diante de uma fileira de 40 pessoas inconscientes, que respiravam com dificuldade. Na primeira viagem ao Hospital de Caridade, Copetti levou quatro jovens, enquanto o enfermeiro ficava monitorando os socorridos. Na segunda viagem, levou um queimado – outras ambulâncias já participavam do socorro. Quando retornou ao local para a terceira ida ao hospital, viu um grupo de rapazes acomodar uma moça na maca e outra na cadeira da ambulância. Eram as duas mortas.
Os corpos foram então retirados da van, para serem levados depois a caminhões da Brigada. Rareavam os sobreviventes. Começavam a chegar à rua os corpos dos que não resistiram. O médico lembra, enquanto exalta a bravura de rapazes que auxiliavam os bombeiros: “Não havia mais como classificar quem estava pior ou melhor, mas quem estava morto e quem estava vivo”. Copetti convocou então os médicos Carlos Fernando Dornelles e Claudio Azevedo, que estavam em casa, e partiu com eles e Miranda para o Hospital de Caridade. A missão era outra – ajudar a salvar os que se amontoavam em corredores, com entubação e ventilação mecânica. Às 11h, ele e o enfermeiro também foram os primeiros a levar de helicóptero uma moça e um rapaz para o Hospital de Pronto Socorro, de Porto Alegre. Miranda voltaria mais uma vez à Capital, com mais dois pacientes. No retorno a Santa Maria, ainda trabalhou até as 19h no Caridade.
O choro de Copetti, ontem à tarde, é parte do que, no jargão das desgraças, ainda se define como o momento em que a ficha começa a cair. Para um colega dele no Samu, o enfermeiro Felipe Cargnelutti Fontoura, 21 anos, que também participou da mobilização da madrugada de domingo, até ontem pela manhã “muita gente ainda estava no automático”.
“O problema vai ser hoje (segunda-feira) à tardinha”. Copetti e Miranda chegaram à calçada da boate pouco depois dos bombeiros. O primeiro caminhão da guarnição a estacionar na Rua dos Andradas saiu da unidade, no centro da cidade, às 3h18min. Estavam na viatura, com outros colegas, os sargentos Sergio Rogerio Chaves Gularte, 46 anos, e Dilmar Lopes, 45 anos, e o soldado Luciano Vargas Pontes, 29 anos. Todos experimentavam, no início da tarde de ontem, a mesma sensação: era como se continuassem ouvindo os celulares que tocavam sem parar, nos bolsos e nas bolsas das vítimas. Lopes conta que desligou alguns aparelhos, mas nunca pensou em atender aos chamados. E se emociona ao contar que duas palavras apareciam com frequência, como identificação das chamadas, no visor: “Às vezes, aparecia escrito: mãe. Outras vezes, pai”.
Lopes enfrentou um drama pessoal. O filho, Matheus, 21 anos, estudante de Enfermagem, o avisou à noite que iria à boate. Quando o pedido de socorro aos bombeiros foi acionado, o militar saiu do quartel abalado: “Quando iniciamos os resgates, eu pensei que, em algum momento, poderia estar tirando meu filho dali”. Ele ligava para o filho, mas a ligação caía na caixa postal. Lopes buscava corpos na boate, os colocava na calçada e voltava a tentar falar com o filho. Era como se o seu telefonema estivesse chamando todos os celulares dos mortos dentro da boate. E o filho não atendia.
Somente às 5h30min, quando os bombeiros já sabiam que não havia mais nenhuma pessoa viva no local, Matheus telefonou para dizer que desistira da festa, porque teria de enfrentar uma longa fila, e estava na casa de um amigo. O sargento Gularte, ao seu lado, lembra que, quando chegaram à Rua dos Andradas, ouviam os gritos de socorro que vinham de dentro da boate. Aos poucos, as vozes foram sumindo.
Os bombeiros entraram na Kiss com cilindros de oxigênio e lanternas com geradores. Encontraram obstáculos na porta. Os corpos caídos dificultavam o acesso.
“Da entrada até um pedaço adiante, ainda tinha gente respirando, junto com gente morta”.
Depois dos primeiros resgates perto da porta, Gularte entrou na boate arrastando-se, levando junto uma mangueira de água. Cruzava sobre corpos e cacos de vidro de copos e garrafas. “Perto e dentro dos banheiros havia pilhas de cadáveres. Era como se fosse um campo de concentração nazista”. Morreram ali porque tentaram sair e encontraram a porta fechada. Retornaram na direção dos banheiros, na tentativa de respirar pelas frestas de janelas abertas para a rua. O sargento Albino Benjamin Peripolli, 50 anos, que chegou à boate quando já amanhecia, lembra que o cenário no banheiro feminino era aterrador: “Os corpos estavam amontoados. Eram tantas pessoas mortas que o monte de corpos chegava à altura das pias”. Com a inalação de fumaça, as mulheres desmaiavam e iam caindo sobre as outras. Já não havia mais o que fazer, nem quando rapazes sem camisa, que apareceram em vídeos vistos na internet, golpeavam as paredes, na tentativa de ventilar os banheiros ou criar pontos de fuga. Os bombeiros não sabem dizer quantas pessoas foram tiradas com vida, por eles e pelos frequentadores que não se afastaram do local enquanto existia a chance de encontrar sobreviventes. Para o sargento Gularte, a imagem mais apavorante, que ontem ainda o atormentava, foi a dos caminhões-baú da Brigada Militar que carregavam os mortos: “Enquanto estive ali, levaram um caminhão e meio com corpos. Infelizmente, iam amontoados. Mas salvamos muita gente”.
Gularte trabalhou por cinco horas no resgate. Ontem, retornou ao quartel dos bombeiros, onde se reuniu com um grupo de colegas, a pedido de Zero Hora, para que contassem o que fizeram, o que viram e como enfrentavam o dia seguinte. O sargento arrastou para a rua meninas, vivas e mortas, da idade da filha, Yohana, de 19 anos, comerciária e estudante de Administração. “Para quem estava lá, aquilo foi uma eternidade”.
Para o sargento Bruno Tupinambá Francescato Severo, 49 anos, os celulares chamando toda a noite criaram uma situação absurda, que ele não esquecerá. O cenário fumacento, escuro e macabro da boate foi, durante horas, tomado pela música e por outros sons típicos dos aparelhos dos jovens. E não havia nada a fazer:
“Aquilo nos maltratou muito”.
“Tu foste meu irmão naquela hora”.Foi pouco mais de uma hora na frente da boate. E foram muitas horas depois, quando saíram dali, no Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo e dentro de um helicóptero com pacientes levados para Porto Alegre.
Na rua, Copetti e Miranda enfileiravam os corpos na calçada, tentando identificar prioridades. Chegaram a ficar diante de uma fileira de 40 pessoas inconscientes, que respiravam com dificuldade. Na primeira viagem ao Hospital de Caridade, Copetti levou quatro jovens, enquanto o enfermeiro ficava monitorando os socorridos. Na segunda viagem, levou um queimado – outras ambulâncias já participavam do socorro. Quando retornou ao local para a terceira ida ao hospital, viu um grupo de rapazes acomodar uma moça na maca e outra na cadeira da ambulância. Eram as duas mortas.
Os corpos foram então retirados da van, para serem levados depois a caminhões da Brigada. Rareavam os sobreviventes. Começavam a chegar à rua os corpos dos que não resistiram. O médico lembra, enquanto exalta a bravura de rapazes que auxiliavam os bombeiros: “Não havia mais como classificar quem estava pior ou melhor, mas quem estava morto e quem estava vivo”. Copetti convocou então os médicos Carlos Fernando Dornelles e Claudio Azevedo, que estavam em casa, e partiu com eles e Miranda para o Hospital de Caridade. A missão era outra – ajudar a salvar os que se amontoavam em corredores, com entubação e ventilação mecânica. Às 11h, ele e o enfermeiro também foram os primeiros a levar de helicóptero uma moça e um rapaz para o Hospital de Pronto Socorro, de Porto Alegre. Miranda voltaria mais uma vez à Capital, com mais dois pacientes. No retorno a Santa Maria, ainda trabalhou até as 19h no Caridade.
O choro de Copetti, ontem à tarde, é parte do que, no jargão das desgraças, ainda se define como o momento em que a ficha começa a cair. Para um colega dele no Samu, o enfermeiro Felipe Cargnelutti Fontoura, 21 anos, que também participou da mobilização da madrugada de domingo, até ontem pela manhã “muita gente ainda estava no automático”.
“O problema vai ser hoje (segunda-feira) à tardinha”. Copetti e Miranda chegaram à calçada da boate pouco depois dos bombeiros. O primeiro caminhão da guarnição a estacionar na Rua dos Andradas saiu da unidade, no centro da cidade, às 3h18min. Estavam na viatura, com outros colegas, os sargentos Sergio Rogerio Chaves Gularte, 46 anos, e Dilmar Lopes, 45 anos, e o soldado Luciano Vargas Pontes, 29 anos. Todos experimentavam, no início da tarde de ontem, a mesma sensação: era como se continuassem ouvindo os celulares que tocavam sem parar, nos bolsos e nas bolsas das vítimas. Lopes conta que desligou alguns aparelhos, mas nunca pensou em atender aos chamados. E se emociona ao contar que duas palavras apareciam com frequência, como identificação das chamadas, no visor: “Às vezes, aparecia escrito: mãe. Outras vezes, pai”.
Lopes enfrentou um drama pessoal. O filho, Matheus, 21 anos, estudante de Enfermagem, o avisou à noite que iria à boate. Quando o pedido de socorro aos bombeiros foi acionado, o militar saiu do quartel abalado: “Quando iniciamos os resgates, eu pensei que, em algum momento, poderia estar tirando meu filho dali”. Ele ligava para o filho, mas a ligação caía na caixa postal. Lopes buscava corpos na boate, os colocava na calçada e voltava a tentar falar com o filho. Era como se o seu telefonema estivesse chamando todos os celulares dos mortos dentro da boate. E o filho não atendia.
Somente às 5h30min, quando os bombeiros já sabiam que não havia mais nenhuma pessoa viva no local, Matheus telefonou para dizer que desistira da festa, porque teria de enfrentar uma longa fila, e estava na casa de um amigo. O sargento Gularte, ao seu lado, lembra que, quando chegaram à Rua dos Andradas, ouviam os gritos de socorro que vinham de dentro da boate. Aos poucos, as vozes foram sumindo.
Os bombeiros entraram na Kiss com cilindros de oxigênio e lanternas com geradores. Encontraram obstáculos na porta. Os corpos caídos dificultavam o acesso.
“Da entrada até um pedaço adiante, ainda tinha gente respirando, junto com gente morta”.
Depois dos primeiros resgates perto da porta, Gularte entrou na boate arrastando-se, levando junto uma mangueira de água. Cruzava sobre corpos e cacos de vidro de copos e garrafas. “Perto e dentro dos banheiros havia pilhas de cadáveres. Era como se fosse um campo de concentração nazista”. Morreram ali porque tentaram sair e encontraram a porta fechada. Retornaram na direção dos banheiros, na tentativa de respirar pelas frestas de janelas abertas para a rua. O sargento Albino Benjamin Peripolli, 50 anos, que chegou à boate quando já amanhecia, lembra que o cenário no banheiro feminino era aterrador: “Os corpos estavam amontoados. Eram tantas pessoas mortas que o monte de corpos chegava à altura das pias”. Com a inalação de fumaça, as mulheres desmaiavam e iam caindo sobre as outras. Já não havia mais o que fazer, nem quando rapazes sem camisa, que apareceram em vídeos vistos na internet, golpeavam as paredes, na tentativa de ventilar os banheiros ou criar pontos de fuga. Os bombeiros não sabem dizer quantas pessoas foram tiradas com vida, por eles e pelos frequentadores que não se afastaram do local enquanto existia a chance de encontrar sobreviventes. Para o sargento Gularte, a imagem mais apavorante, que ontem ainda o atormentava, foi a dos caminhões-baú da Brigada Militar que carregavam os mortos: “Enquanto estive ali, levaram um caminhão e meio com corpos. Infelizmente, iam amontoados. Mas salvamos muita gente”.
Gularte trabalhou por cinco horas no resgate. Ontem, retornou ao quartel dos bombeiros, onde se reuniu com um grupo de colegas, a pedido de Zero Hora, para que contassem o que fizeram, o que viram e como enfrentavam o dia seguinte. O sargento arrastou para a rua meninas, vivas e mortas, da idade da filha, Yohana, de 19 anos, comerciária e estudante de Administração. “Para quem estava lá, aquilo foi uma eternidade”.
Para o sargento Bruno Tupinambá Francescato Severo, 49 anos, os celulares chamando toda a noite criaram uma situação absurda, que ele não esquecerá. O cenário fumacento, escuro e macabro da boate foi, durante horas, tomado pela música e por outros sons típicos dos aparelhos dos jovens. E não havia nada a fazer:
“Aquilo nos maltratou muito”.
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