UMA INCURSÃO CONTRA O CRIME (Páginas 4 e 5 com fotos e
contracapa com foto) Zero Hora acompanhou, durante oito horas, a estreia dos
PMs de pequenas localidades gaúchas na patrulha de cidades campeãs de
homicídio. A ofensiva foi repleta de novidades para os profissionais deslocados
do Interior para ajudar a conter a criminalidade na Região Metropolitana. Alvorada,
1h de sábado, 12 de maio. Na cidade com a mais alta taxa de homicídios deste
ano no Rio Grande do Sul – 14 assassinatos por 100 mil habitantes –, uma garoa
recai sobre o corpo do rapaz estendido no asfalto. Cristiano Schütz, o Tiano,
está deitado como morreu, com os braços para cima, tentando proteger o rosto,
olhos vidrados fitando o céu enevoado. Ao lado, sobre uma pilastra de cimento,
uma lata de cerveja que ele não conseguiu terminar de beber. O sargento PM João
Maria Moura, 48 anos, observa de perto a cena, olhos atentos. Não é algo a que
esteja acostumado. Ele é integrante de um pelotão de policiais militares de São
Miguel das Missões, cidade com 8 mil habitantes situada no noroeste do Estado e
conhecida por ter as mais imponentes ruínas jesuíticas do Brasil. Em 25 anos de
Brigada Militar, esta é a primeira noite de Moura patrulhando uma cidade de 195
mil habitantes, Alvorada – lugar que ele nunca tinha pisado, até dois dias
atrás. É a primeira vez que vem a serviço à Grande Porto Alegre. Foi deslocado
do Interior para atuar na força-tarefa com 200 policiais militares que tenta
conter o avanço dos homicídios – os assassinatos deram um salto no primeiro
trimestre deste ano, especialmente na Região Metropolitana. Logo Moura e o seu
chefe, o tenente Luís Carlos Lemes – também integrante da guarnição de São
Miguel –, e outro veterano, com 30 anos de serviço, assistem a uma cena incomum
na região de onde eles vêm. Uma loira bonita e bem vestida chega correndo, aos
gritos. “O que vocês fizeram com ele? O quê???” pergunta a jovem, empurrando os PMs. O capitão
Fábio Kuhn, chefe dos policiais que isolam o local, avisa logo. “Não fomos nós,
dona”. Inconformada, a jovem tenta furar o bloqueio, mas é contida por amigas e
pelos PMs. “Leva ele para o hospital, ainda dá tempo”, grita a garota, sem
notar que o corpo de Tiano já está rígido, sem vida, em decorrência de mais de
sete tiros. Bandos de jovens adolescentes, tênis caros e casacos com capuz,
começam a se juntar perto do corpo, sussurrando “vamos pegar esses caras”. São
impedidos de chegar mais perto por um cordão plástico estendido pelos policiais
ao redor do cadáver. É preciso preservar o local, juncado de cápsulas de
pistola, para a perícia fazer seu serviço. Não que os motivos do crime sejam surpreendentes:
Tiano, segundo os agentes do serviço reservado da PM, tem antecedentes por
tráfico e responde a inquéritos por homicídio. É figura conhecida na Vila
Americana, onde morreu, um dos lugares marcados pelas guerras do tráfico em
Alvorada. Moura e Lemes observam tudo, atentos. Apesar das quase três décadas
de BM, portam-se como alunos aplicados. Tudo é novidade. Homicídio, em São
Miguel, é raridade, menos de um por ano. Via de regra, crime passional ou briga
de bar, pondera o tenente Lemes. Assalto, com bandido de arma na mão, idem,
coisa de filme.”Tráfico também quase não se vê. Não com gente armada, pelo
menos”, compara o oficial, ressaltando que a maior parte do serviço diz
respeito a arrombamentos. Ah, e abigeato. Esse, sim, é o grande problema em São
Miguel. Há cerca de um mês, Lemos ajudou a Polícia Civil a prender uma
quadrilha com 10 ladrões de gado. Foram pegos no Interior, em ranchos no campo.
“Outro planeta, se comparado com as favelas e edifícios daqui”, comenta o
tenente. Não que prender ladrões de gado seja atividade imune a sobressaltos.
Na hora de uma dessas prisões recentes aconteceu tiroteio. Ninguém se feriu, os
ladrões atiraram para tentar fugir, mas se deram mal. Disparar arma é algo
incomum, muito incomum, em São Miguel das Missões.Tanto que o sargento Moura, o
outro veterano desta força-tarefa deslocada para Alvorada, usa apenas um
revólver. Faz as abordagens usando essa arma concebida há cerca de 150 anos,
que dispara tiro a tiro. Um risco na Região Metropolitana, onde a maioria das
quadrilhas usa pistolas. Algumas, até fuzis.Uma letalidade que não intimidou
Moura, que sacou do velho “trezoitão” (o Taurus calibre .38) mais de uma dúzia
de vezes nas primeiras oito horas de patrulhamento. “Homem por homem, a gente
também é”, avisa Moura. Apesar da firmeza, há preocupação em não posar de
herói. Com outros 50 colegas das Missões, Moura recebeu aulas de Direitos
Humanos e controle de distúrbios na Academia da PM, em Porto Alegre. Além
disso, todos fizeram um “city tour” por Alvorada, de ônibus, na sexta-feira. O
veículo circulou pelas principais vilas: Americana, Regina, Umbu e outras
menores, também perigosas. A cada duas quadras, os PMs localizavam alvos
suspeitos: bares cheios, danceterias, grupos de jovens fumando e bebendo nas
esquinas. Como é de praxe, puseram todo mundo de frente para a parede, mãos na
cabeça, bolsos esvaziados. Nas abordagens presenciadas por ZH, ninguém
reclamou, é procedimento de rotina na noite alvoradense. E assim se passaram
oito horas: suspeitos de tráfico revistados. Jovens flagrados com droga,
detidos. Supostos assaltantes, igualmente detidos. Carros velhos e com
documentação irregular, apreendidos. Os veículos foram guinchados. As pessoas,
conduzidas a uma delegacia da Polícia Civil, para identificação e possível
autuação. Só em Alvorada, mais de 15 ficaram presos, todos com pequenas
quantias de drogas ou em posse de veículos roubados.E como os PMs das Missões
conseguiam se locomover por uma cidade onde nunca estiveram? Cada viatura tinha
como motorista um policial do 24º Batalhão de Polícia Militar, o que patrulha
Alvorada. Não tem beco por ali que o soldado Naelson César de Mesquita, por
exemplo, não conheça. Ele serviu de motorista na viatura do sargento Moura. E
também de alerta para malandragens dos suspeitos. “E essa maconha?”, questionou
Naelson, ao ver um jovem jogar um pacotinho no chão.O rapaz disse que não era
dele. “Então é minha? Que é isso, rapaz, querendo enganar quem?” retrucou o PM.
E o adolescente foi levado no camburão. Naelson sorriu ao ver que os PMs
interioranos reclamavam do peso do colete à prova de balas. Afinal, em São
Miguel não há a proteção para todos e nem sempre se usa. Naelson não tira o
seu. “Há duas semanas, na Vila Americana, fomos abordar uns caras numa moto.
Eles viraram e dispararam com pistola. Foi quase...” recorda, evitando usar a
palavra “morte”. Naelson e os colegas alcançaram a dupla da moto. O veículo
tinha 6 mil multas, conta. “6 mil?” questiona o repórter. “Sim, 6 mil. Há anos
ela é revendida entre malandros, que sequer têm carteira. É a chamada “moto de
estouro”, com prestações acumuladas e multas vencidas. O pessoal usa para fazer
assaltos”, diz Naelson. Mais uma para a lista de novidades dessa noite
interminável para Moura e Lemes. Um terceiro integrante do pelotão de São
Miguel, o soldado Márcio Monteiro, foi na janela da caminhonete com a escopeta
calibre 12. Uma patrulha bem diferente da que está acostumado, em que
espingardas de repetição não são usadas.Lemes diz que esses dois meses na
Grande Porto Alegre (prazo estimado para a força-tarefa contra homicídios
atuar) devem ser os últimos da carreira dele. Só lamenta não deixar herdeiro na
profissão. “Tentei convencer meu guri a ser policial. Não quis. Ganha mais como
advogado”, sorri Lemes. A noite terminou com mais um homicídio em Alvorada. Uma
mulher foi morta em casa, em circunstâncias misteriosas. Emoções mais do que
suficientes para uma primeira madrugada, das muitas que virão. (zero-Hora, 14/05/12).
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