A BONECA MUTILADA “O
inspetor Ângelo Salvatore detestava seu nome e encarou o advogado com desprezo.
Teve vontade de dizer que nunca salvou ninguém, nem coisa nenhuma, nesta vida
sem sentido. E para anjo não servia. Definitivamente. Então, que o chamasse
apenas de policial.
- Que seja. Mas o senhor entende? Melhor deixar como está, consigo um laudo médico. Um B.O., nestas condições, pode ser precipitado e desastroso. A família precisa ser preservada.O policial olhou por cima do ombro do homem jovem e bem vestido. Lá fora, a conselheira tutelar caminhava de um lado para o outro, aflita, no pátio da delegacia. Pendurada no celular e tentando contato com parentes que não queriam ser localizados, que não queriam saber da criança, que se recusavam a falar sobre o assunto. Como se a responsabilidade não fosse deles. Pais? Não existiam. Pai morto, mãe presa. Coisa de tráfico. Um lar substituto parecia uma saída. Parecia.
A menina estava sentada no chão. Seis anos. Brincava com uma boneca, refugiada em seu mundo paralelo. Ângelo desviou os olhos da criança e olhou o calendário na parede da DP. Dezoito de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Era menino, ainda, quando em 18 de maio de 1973, Araceli Cabrera Sanches, então com 8 anos, foi sequestrada, drogada, espancada, estuprada e morta por membros de uma tradicional família capixaba. Ninguém foi punido pelo que aconteceu.Ninguém.- Vou conversar com você, mocinha bonita. Tudo bem? - ele perguntou, ao se agachar ao lado dela, tentando uma aproximação que nem ele mesmo sabia como fazer.O advogado se afastou para atender o celular. A menina não respondeu. E não se mexeu mais. Apertou os lábios, os olhos perderam seu resquício de brilho, as mãos se crisparam. A boneca, sem pernas, foi deixada de lado.
O policial ficou olhando o brinquedo. E, de repente, entendeu porque não precisava perguntar sobre a faca no pescoço do homem em sua casa, sobre de onde ela teria tirado forças, se mais alguém a ajudara, ou o porquê do sujeito estar nu sobre a cama. Não. A resposta estava ali, na boneca. Nas pernas arrancadas com raiva, com culpa, com nojo.
- Foi você? - ele perguntou, apontando as pernas que faltavam.
Ela apenas chorou em silêncio”.
- Que seja. Mas o senhor entende? Melhor deixar como está, consigo um laudo médico. Um B.O., nestas condições, pode ser precipitado e desastroso. A família precisa ser preservada.O policial olhou por cima do ombro do homem jovem e bem vestido. Lá fora, a conselheira tutelar caminhava de um lado para o outro, aflita, no pátio da delegacia. Pendurada no celular e tentando contato com parentes que não queriam ser localizados, que não queriam saber da criança, que se recusavam a falar sobre o assunto. Como se a responsabilidade não fosse deles. Pais? Não existiam. Pai morto, mãe presa. Coisa de tráfico. Um lar substituto parecia uma saída. Parecia.
A menina estava sentada no chão. Seis anos. Brincava com uma boneca, refugiada em seu mundo paralelo. Ângelo desviou os olhos da criança e olhou o calendário na parede da DP. Dezoito de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Era menino, ainda, quando em 18 de maio de 1973, Araceli Cabrera Sanches, então com 8 anos, foi sequestrada, drogada, espancada, estuprada e morta por membros de uma tradicional família capixaba. Ninguém foi punido pelo que aconteceu.Ninguém.- Vou conversar com você, mocinha bonita. Tudo bem? - ele perguntou, ao se agachar ao lado dela, tentando uma aproximação que nem ele mesmo sabia como fazer.O advogado se afastou para atender o celular. A menina não respondeu. E não se mexeu mais. Apertou os lábios, os olhos perderam seu resquício de brilho, as mãos se crisparam. A boneca, sem pernas, foi deixada de lado.
O policial ficou olhando o brinquedo. E, de repente, entendeu porque não precisava perguntar sobre a faca no pescoço do homem em sua casa, sobre de onde ela teria tirado forças, se mais alguém a ajudara, ou o porquê do sujeito estar nu sobre a cama. Não. A resposta estava ali, na boneca. Nas pernas arrancadas com raiva, com culpa, com nojo.
- Foi você? - ele perguntou, apontando as pernas que faltavam.
Ela apenas chorou em silêncio”.
(Zero Hora. COLUNA DE OSCAR BESSI FILHO. página 20).
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